domingo, 30 de maio de 2010

Habitat de orquídeas em restinga

Outro dia fui também com a turma que cursa a disciplina de pós-graduação Fitogeografia do Brasil em uma restinga da região Sudeste do Brasil.

Restinga é o termo empregado para designar a vegetação arbustiva ou arbórea que ocorre sobre solos arenosos ao longo da zona costeira do país, assim, existem muitas formas de vegetação de restinga, de florestas relativamente fechadas onde ocorrem árvores que chegam a 20 m de altura, às formações de ilhas de arbustos ou pequenas ervas esparçadas. Ambas formações ocorrendo em solos muito arenosos, paupérrimos em nutrientes e bastante influenciados por sais que os sprays marítimos trazem (especialmente NaCl, cujo excesso dificulta a hidratação das plantas).

Na literatura encontram-se algumas hipóteses para explicar a compartimentalização das várias fisionomias (formas) de restinga, por exemplo, "floresta de restinga" onde o lençol freático é mais próximo da superfície, o que disponibiliza água para as árvores de maneira mais constante ao longo de todo ano, e com o lençol aprofundando e a oferta de água diminuindo o porte da vegetação vai ficando menor, e os indivíduos ficam mais espaçados entre si.

Mas a oferta de água em si não é única variável cuja vegetação depende, como mencionado, seus solos são extremamente pobres em elementos nutrientes, principalmente por serem muito arenosos e, por conseguinte, praticamente sem partículas com cargas elétricas livres em suas superfícies (as argilas) que são capazes de reterem os nutrientes no solo, assim a oferta dos mesmos é sempre muito baixa.

A estratégia para contornar essa baixíssima oferta de nutrientes do solo é a ciclagem biogeoquímica (já comentado aqui e aqui). Espécies de plantas pioneiras, que são mais rústicas e mais eficientes em conseguirem e em acumularem os "raros" nutrientes), chegam antes e se estabelecem, vão depositando matéria orgânica na superfície do solo, a decomposição da matéria orgânica disponibiliza nutrientes no sistema. Quanto mais água (lençol freático mais próximo da superfície), menos as pioneiras sofrem, e mais produzem, e mais a vegetação vai fechando e ficando alta...

Abaixo a trilha na floresta de restinga, tentando ilustrar o solo bastante arenoso e de cor clara, mas muito úmido e com um tom marrom por causa da matéria orgânica:



As orquídeas deste ambiente:

Oeceoclades maculata;











-Cyrtopodium gigas, e;













Cattleya harrisoniana.











Agora, o ambiente mais típico de restinga:


Reparem nas ilhas, uma árvore no centro e espécies arbustivas ao redor. Cada ilha dessa começa com algo parecido com isso:

 (esta Palmaceae consegue emitir novos brotos a metros de distância da touceira mãe, o que facilita a colonização de novos pontos ainda não vegetados, e passa a acumular material orgânico no seu redor).

O que mais me chamou a atenção e inspirou este post foi ter notado que os indivíduos de Cattleya guttata com melhores desenvolvimentos estão justamente no solo, onde há acúmulo de material orgânico e maior oferta de nutrientes e de água:



Cattleya guttata é mais frequentemente epífita (um post sobre outro habitat aqui), podendo ocorrer como rupestre e, como no caso ilustrado acima, terrestre, sobre um solo muito arenoso, ou seja, bastante arejado e bem drenado.

Observei que neste habitat os indivíduos de Cattleya guttata epífitas estavam bastante subdesenvolvidos, apresentando pseudobulbos baixos, pouco ou nenhum incremento nos comprimentos dos pseudobulbos de um ano para o outro, poucas folhas na touceira (sintoma já discutido aqui) e plantas muito coloridas (amareladas e avermelhadas), indicando deficiências nutricionais agudas, especialmente de nitrogênio e fósforo (deficiências nutricionais manifestam-se visualmente quando já bastante acentuadas!):








Outras espécies de orquídeas desse ambiente:

-Rodriguezia bracteata;  

-Oncidium sp.; 
- Uma terrestre que não sei qual é, e;
- Epidendrum denticulatum. 
Dados da tese de doutorado do meu amigo Elton Valente oriundos de diversos ambientes da Serra do Cipó ilustram bem a importância do material orgânico sobre o solo para sustentar a vegetação. Abaixo reparem na insignificância dos teores médios de fósforo (P), potássio (K) e cálcio (Ca) na camada de 0 a 20 cm de profundidade de um Espodossolo (solo bastante arenoso, semelhante aos que ocorrem nas restingas) em relação às médias dos teores dos mesmos nutrientes na manta orgânica logo acima deste solo:
ESKo => Floresta


Teor médio

         (mg/kg)
solo (0 a 20 cm)
P
5,69

K
35,75

Ca
17,86

manta orgânica
P
327,2

K
1.133,7

Ca
246,2




A tese do Elton: VALENTE, E. L., 2009. Relações solo-vegetação no Parque Nacional da Serra do Cipó, Espinhaço Meridional, Minas Gerais. Viçosa: UFV, 2009, xvii, 138p.: il. Tese (Doutorado em Solos e Nutrição de Plantas). Comentado por ele aqui, aqui, aqui e aqui.

sábado, 1 de maio de 2010

Ciclagem biogeoquímica de elementos e o cultivo de orquídeas


Depois de muito tempo sem blogar a gente se sente meio travado para escrever, vontade de escrever aqui não faltou, mas, como dizem, “coisas aconteceram...”. Uma delas é que estive acampado em uma ilha na Antártica por um tempo, um dos ambientes de estudo do meu doutorado, experiência que pretendo relatar em breve no Edafopedos.

Os principais temas chave da minha tese de doutorado será fosfatização, relação solo – vegetação e ciclagem biogeoquímica de elementos, e esse post é sobre um desses temas, a ciclagem biogeoquímica de elementos, idéia que me ocorreu recentemente ao ver algumas orquídeas durante uma viagem técnica da disciplina de Fitogeografia do Brasil, então visitando alguns campos rupestres da Serra de Ouro Branco, em Ouro Branco, MG.




























O francês Lavoisier, o pai da química moderna, nas idas do século XVIII já dizia: "Na Natureza nada se perde, nada se cria, tudo se transforma", e de certa forma isto é a ciclagem biogeoquímica dos elementos, que é a integração de dois ciclos, o geoquímico e o bioquímico.




O ciclo geoquímico refere-se às passagens dos elementos químicos pelos compartimentos geológicos do planeta, por exemplo, um elemento químico que já pertenceu a uma molécula de um mineral de uma rocha vulcânica passou a compor uma molécula de um mineral de solo, solo erodido e transportado até o mar e lá esses sedimentos acumularam-se, esse material cimentou, ficou coeso e virou rocha de novo (agora uma rocha sedimentar), e o mar secou e com o tempo a rocha sedimentar virou solo novamente (mais sobre isso no post Serra do Cipó I).


E o ciclo bioquímico é a transferência dos elementos ao longo do corpo de um único ser vivo ou entre vários seres vivos, por exemplo, a planta depois de ter absorvido um elemento o coloca em uma folha que está crescendo, está folha então fica velha, e se o elemento for um elemento móvel na planta ele é reencaminhado para uma outra folha que esteja crescendo, ou esta folha é comida por um animal, que por sua vez é predado por outro...


Agora juntando os dois ciclos para entender o ciclo biogeoquímico temos a rocha intemperizando e virando solo, a planta absorve o elemento do solo, o elemento fica por um bom tempo no corpo da planta, “pulando de folha em folha”, mas uma hora volta o solo, de onde a mesma ou uma outra planta poderá absorvê-lo novamente, ou ainda, uma vez no solo este poderá compor a rede de algum mineral que se forma no solo, e depois esse mineral se desmancha e a planta pega seus integrantes, ou o solo vira rocha de novo...

Em geral a vegetação é tão mais dependente da ciclagem biogeoquímmica dos elementos nutrientes quanto maior é a pobreza desses recursos no ambiente e, dentre as coisas que caracterizam esses campos rupestres sobre a rocha quartzito destacam-se sua pobreza química refletindo em pobreza de nutrientes e ocorrência de espécies vegetais extremamente eficientes em adquirir, utilizar e ciclar os limitados nutrientes disponíveis, e dentre as plantas mais eficientes neste contexto estão as orquídeas.

Na foto abaixo temos uma touceira de Pleurothallis teres em uma fenda de quartzito da Serra de Ouro Branco. Reparem que no centro da touceira há vestígios de folhas e de pseudobulbos mais velhos que passaram boa parte dos nutrientes que tinham para a parte mais jovem, que estava crescendo e precisando deles. Provavelmente as folhas mais velhas demorariam mais para senescerem se houvesse um suprimento melhor de nutrientes no ambiente para a planta se dar ao luxo de não precisar reciclar internamente seus preciosos constituintes.


Agora nas fotos abaixo temos duas touceiras de Laelias rupestres, provavelmente Laelia flava (eu sei... Essas laelias viraram Hoffmannseggella e agora são consideradas Cattleyas). A touceira da esquerda está, digamos, em uma fenda mais aconchegante, que acumula mais recursos (água, sedimentos, matéria orgânica a ser decomposta liberando nutrientes, etc.) e está bem mais vistosa que a touceira da direita, com mais folhas, folhas novas e outras mais antigas, já a touceira da direita está pior, menos pseudobulbos com folhas, e o pseudobulbo mais novo subdesenvolvido, indicando que a quantidade de recursos disponíveis para ele ter desenvolvido foi menor do que sua demanda.






























Ainda, reparem na touceira da direita, seus primeiros pseudobulbos provavelmente perderam suas folhas por causa do fogo (vide sinais de queimadura nestes), mesmo após ter sido queimada o tamanho dos pseudobulbos foi aumentando paulatinamente, em muitos deles ainda restam sinais de inflorescência (evidência de não ter sofrido com o fogo depois), mas estão sem folhas, indicando que a touceira provavelmente teve que forçar a retranslocação de muitos nutrientes para a parte da frente (a nova) se desenvolver, o que diminui o tempo de vida das folhas mais velhas, reparem a folha mais velha bem amarelada. Está amarelada porque suas moléculas de clorofilas nos parênquimas clorofilanos foram degradados para que os átomos de nitrogênio e magnésio que as formavam fossem enviados para os dois pseudobulbos mais novos.

Agora especulando um pouco mais, boa parte da vegetação nessa região pegou fogo e virou cinza, a degradação das cinzas liberou nutrientes como cálcio, potássio e fósforo que foram amplamente utilizados no período em que esta touceira se desenvolveu mais (os pseudobulbos do meio são os maiores), porém este fornecimento relativamente abundante cessou-se e houve uma demanda muito grande de retranslocação de nutrientes para as partes em crescimento, o que não tem sido suficiente nos últimos anos pois os pseudobulbos novos estão menores, e nesse estágio ainda a ciclagem biogeoquímica não está tão bem estabelecida, pois muito da matéria orgânica das finas camadas de sedimentos foram queimadas e não houve tempo de ter sido formado um novo banco de matéria orgânica capaz de liberar nutrientes adequadamente - exemplo de perturbação antrópica abalando a auto-sustentabilidade dos ecossistemas!


Então, finalmente, onde eu queria chegar é que orquídeas bem manejadas, ou seja, dente outros cuidados os que proporcionam condições delas manterem raízes vivas para absorver os nutrientes necessários (ver algo em Rega de orquídeas I e II) e o fornecimento de nutrientes de maneira balanceada (quantidade) e equilibrada (proporção) (algo também aqui) tendem a manterem suas folhas mais velhas por mais tempo, e consequentemente uma touceira mais vistosa, o que é interessante visto que se trata de plantas ornamentais.


Abaixo uma Laelia purpurata com raízes mortas devido ao recipiente e substrato acumular muita água matando as raízes e impossibilitando a planta de absorver nutrientes de maneira adequada, com a demanda da brotação nova a parte velha senesce abruptamente como se investisse tudo que pode no broto verdinho, o que não é suficiente para resultar em um broto de tamanho saudável, pois alguns nutrientes como o cálcio não são passíveis de retranslocação na planta.



Para terminar algumas outras fotos desta excursão: